quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Subúrbio, ironia, assalto: um retrato em preto em branco do Rio de Janeiro.

O subúrbio carioca tem suas ironias. Basta olharmos com mais cautela as cadeiras na calçada e a conversa despreocupada. Se prestarmos atenção na correria das crianças ao redor de mini fogueiras que assam batata doce nas quentes noites de inverno. Na parte menos abastada da sociedade carioca vemos vizinhos que dividem a rotina, se ajudam e se omitem na proporção que as fofocas que ali nascem tomam forma e se espalham. Em cada bar, fregueses cheios de novidades para partilhar entre uma cerveja e outra e muito mais do mesmo quando o assunto é família. Foi em um lugar assim que ela cresceu. Passou a infância brincando na rua, correndo livre fora de casa. Aproveitando o ar fresco sem grades de um condomínio. Ao longo da sua adolescência aprendeu a andar de ônibus e passou a se sentir segura onde morava, apesar de ter a certeza de não pertencer aquele lugar. Pique esconde, futebol, taco, o primeiro reveillon fora de casa (foi na rua mesmo, com os amigos), um namoradinho bobo de infância, o primeiro emprego, a necessidade de um rumo quando alguém que ela amava faltou, o cinismo das pessoas que davam bom dia mas passavam o dia invejando ou falando mal de todos. Foi um flash, passou em cinco segundos e foi seguido da visão de um carro arrancando e cantando pneus e dois corpos estirados, ensanguentados. Ela se lembrava de ter visto um deles apontando a arma em sua direção e a partir disso apenas flashes: um grito ao fundo, a surpresa nos olhos de seu agressor, um tiro, uma sensação de algo quente escorrendo em seu braço. Sentiu como se estivesse acordando, o carro cheirando a pólvora, a mão dormente, uma dor insuportável no ombro direito. Olhou e viu o sangue, que outrora escorrera, seco e percebeu que não podia se mexer direito. Achou que ia sentir raiva, mas estava inundada de felicidade, e esse era um momento raro. Estava feliz por estar viva apesar de "avariada". Se deu conta do que ocorrera e olhou ao redor. Tinham dois corpos estendidos no chão! Ela precisava sair dali sem deixar rastros pois a polícia certamente viria em seu encalço. Ao fundo uma voz rouca gritava: -"Me dá! Me dá logo tudo!" Foi trazida para a realidade com um furor só visto em cenas de filmes ou livros. Havia uma pistola preta, gasta, mal cuidada, apontada em seu rosto e um rapaz franzino e meio "taqui" (como ela costuma descrever as pessoas elétricas). A frase se referia a um anel que ela carregava desde mocinha e fora presente de sua amada mãe. Antes de entregar o anel, questionou o rapaz: -"Oi? A minha roupa? Você esta falando sério?" (Ele tinha pedido a roupa antes de ver o anel.) O "Taqui" estava indo embora quando viu o celular dela e resolveu pegar também. E assim como veio, foi embora. Entrou no carro junto com o outro rapaz que "dava cobertura" e deixaram o local com um motorista apressado e ruim de roda. Um grito ecoou. Era a primeira vítima, uma mulher grávida, que estava inconformada por passar por aquilo. Ela não sentiu raiva, sentiu pena da moça e regojizou-se no pequeno detalhe de estar viva para encarar a situação. Lembrou-se do que de fato aconteceu: Ela havia parado para buscar o namorado e enquanto parava viu um assalto ao carro da frente mas era tarde. Os bandidos haviam fechado a rua de forma a impossibilitar que o carro seguisse adiante e enquanto um apontava a arma em sua direção o outro seguia abrindo a porta do carona do carro da frente e batia na pessoa sentada ali enquanto pegava sua bolsa. Ela constatou que só podia esperar e ver o que acontecia. Agora, com a grávida gritando ao fundo e seu namorado estendendo um copo de água para a moça a ficha caiu e ela percebeu o quanto era boba. O quanto queria ter um pouquinho da força das personagens que ela tanto gostava dos contos de uma escritora amadora que ela havia lido em um blog qualquer. Raiva era o que ela queria estar sentindo e não conseguia, mesmo sentindo essa impotência que só o fato de ser subjugada com uma arma em sua face é capaz de te oferecer; mas era boba demais para isso, sentia apenas alívio de estar viva e de ter ao seu lado alguém que estende a mão a um estranho em um momento difícil. Foi quando o rapazinho a abraçou que ela percebeu que a pequena fração de segundo, em que ela se imaginou como uma personagem de contos policiais, era o suficiente para ter tirado sua vida e ter impedido aquela sensação de estar protegida, amada. Se ela tivesse tentado fazer qualquer coisa contra seu algoz, podia não estar mais entre aqueles que ama e isso caiu como uma pedra de uma tonelada em sua consciência. Ela então cumpriu o programado e aproveitou a noite com sua família e amigos em uma celebração à vida. Naquele momento ela decidiu que jamais seria uma heroína de contos policiais ou uma super máquina moldada pela sociedade para fazer o bem com suas próprias mãos. Dali em diante ela decidiu ser apenas a menina que sempre foi... Mas teve a certeza que graças aos contos que permeavam sua mente poderia ser, em um texto, não uma mas inúmeras pessoas diferentes. Assim resolveu que ia esperar que as coisas "voltassem para os eixos" e então se poria a acabar de escrever seus contos medianos.

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